segunda-feira, março 28

O Óscar

Pelos vistos a história ainda mal tinha começado e já levava uma porrada de personagens logo no primeiro capítulo. Enquanto me dirigia para a cozinha conseguia ao de longe desvendar aquele simpático vulto.

Presumo que saibas porque aqui estou? Raramente és apanhado desprevenido e não me parece que esta seja uma dessas vezes, vincou o Óscar com o café a fumegar à sua frente.

Disseram-te para me convocares ou estarei errado? respondi eu com uma questão abrindo assim o diálogo e alargando consideravelmente o tempo de conversa para preencher o espaço do pequeno almoço.

Está tudo em alvoroço na sala ao lado. Não aceitaram muito bem o que fizeste com o Lorde Ciúme e decidiram convocar uma assembleia de emergência de forma a quase te obrigar a comparecer. A casa já está muito cheia mas corre o boato que alguns dos terríveis foram igualmente chamados e estão para chegar a qualquer momento, disse calmamente, como o faz sempre, especialmente quando se trata de uma situação de alarme

sempre encantador este Óscar

Verdade? perguntei eu, com uma ponta de sarcasmo rasgada na boca

(ao menos esse, o sarcásmo, nunca vem por inteiro, vem aos pedaços para se diluir facilmente já que o seu sabor é tão intenso)

Pensei que depois do Senhor Desespero e do seu irmão Conde Delírio não enviariam mais ninguém. Tenho feito assim tanto para reclamarem ao concelho supremo dos sentimentos?

Parece que sim. Consta-se que pretendem enviar Sua Santidade a Tristeza.

Devo confessar que engoli o pedaço de pão que estava a comer literalmente a seco quando esse nome foi evocado.

Ai sim? Pois mais me ajudas. Vais tu dizer naquela assembleia que estou ausente. Que comparecerei quando a meu bem ver entender. Se esperam que eu diga alguma coisa pois esperem sentados que eu tenho mais que fazer neste momento, repeli, como também repeli o café por estar sem açúcar, atirando com a chávena directamente para o lava-loiças com uma brutalidade tal que fiquei com a impressão de tê-la partido.

O concelho crê que alguém tem de tomar conta disto. Temem que te leves por essa crença, por essa calma que tens vivido. Isso de ires para a cama com a Confiança não pode ficar por aí, às escondidas. Querem que assumas coisas e que definas posições.

Pois eu assumo que és tu quem vai lá falar e defino que digas que por agora quero todos quietos e sossegados. Não preciso deles para nada neste momento, retorqui.

Pois bem, disse enquanto se levantava e sem mais discussão, assim farei! Sabes que te defenderei até ao infinito. Abraçou-me e voltou-se em direcção à sala, já de mangas arregaçadas, preparando-se para dar umas bofetadas em alguém se o acaso chamar o necessário. O Óscar não precisa de esperar para ouvir tudo. É gajo que meia palavra chega para encher a boca toda ao discurso.

Fui-me preparar para a reunião que tinha marcado com o Mestre Raciocínio, não antes de ver fechar a porta da sala atrás do Óscar, fechando naquele cúbiclo toda a tensão que parecia prencher o ar na manhã de hoje.

segunda-feira, março 14

Ensaio ao cíume

Não foi nada do outro mundo ou algo que eu já não esperasse mas também não havia necessidade para tanto.
Irrompeu pelo quarto a dentro como já o tinha feito algumas vezes
outrora creio
Entrou, e ao contrário daquelas pessoas que partem convictas de que têm uma palavra a dizer sobre determinado assunto e no momento em que se confrontam com o seu interlocotor perdem a coragem e ficam totalmente estáticas, o Lorde Ciúme soltou o discurso como se de cães de guarda se tratasse, seguro de que defenderiam o seu juízo e entendimento
destemidamente
Pois diz-me como é que és capaz de aturar esta situação. Sinto-me perplexo quando te vejo aí deitado como se tivesses acampado no abrigo daquele que está prestes a ganhar a guerra. Estou pronto a explodir e ainda mais me enerva ver-te tão sossegado.
Não te sentes injustiçado, não te sentes insignificante, não te sentes traído
Traído!
Tudo fizeste para estar daquele lado, teres aquele papel e muito correcto foste em diversas circunstâncias e deixaste-te estar à margem, à espera da decisão, mas sempre houve uma ponta de insurreição, de anti-conformismo.

Conformaste-te, não vejo outra explicação
Desistes não é verdade?
Cobarde
Defende-te perante mim, ao menos, já que não és capaz de te defender perante a trivialidade da vida, contra o banalismo vergonhoso, contra o descrédito.
Fiquei sentado na cama, com a manta por cima do meu corpo, a olhar para aquela figura que por muito se esforce por maquilhar, por se disfarçar, acaba por se revelar sempre a mesma, com as mesmas expressões. Decidi prolongar o vazio entre o tempo da pergunta e o da resposta, como quem quer dar o ar de que realmente estava a assimilar tudo o que se dissera antes e que me preparava agora para dar inicio à minha estratégia de defensa. Dei o ar mas já tinha a lição sabida de outros momentos
Ouve lá, não tens fome? Gostava de comer alguma coisa, respondi, desviando claramente a conversa para aquilo que era para mim no momento uma necessidade, uma verdadeira preocupação
Estava-me a cagar para aquela conversa
Eu não compreendo porque vim viver contigo durante este tempo todo, suspirou o Lorde.
Porque é que me queres aqui se não me prestas atenção, se me gozas com esse desplante, com esse à vontade, disse enquanto dava meia volta e retirava-se do quarto, esmorecido, como um cão que gane aos ouvidos do dono.
Assim que saiu levantei a manta e os lençóis.
Podes sair, disse eu.
Ainda bem que ele não te viu senão seria mais difícil explicar-lhe que ele, tal como outros que já aqui residiram, fazem parte de mim.
Acho que ele realmente entraria num rodopio de loucura se me visse contigo
, disse matreira a Confiança.
Possivelmente. Ele nunca vai perceber
Afinal de contas uma pessoa vai para a cama com quem quer.