segunda-feira, janeiro 25

(...) (parte 3)

Pouco depois de ela sair o Óscar dirigiu-se à mim, agora sem a vassoura e de cigarro na mão, com um ar mais descontraído, mas com um ligeiro toque de preocupação ao mesmo tempo. Sentou-se, cruzou as pernas e ao seu jeito pousou os braços sobre a mesa e concentrando-se em mim deixou-se ficar calado, com um olhar vago, à procura de me decifrar.

Queres um cigarro, disse por fim.
Não, estou a dar uma pausa ao tabaco, respondi lá de longe do vazio, do lugar distante onde permanecia suspenso o meu pensamento.
Então e o que é que ela disse, perguntou sem dó nem piedade, impetuoso, como quem estava seguro de ter percebido onde acertar para liquidar o coelho à primeira surpresa dolorosa. Teria sido como se o acaso me tivesse aberto o alçapão que nos separada do abismo e mergulhasse violentamente no seu fundo, se não fosse o facto de já nas suas entranhas me encontrar, estatelado, imóvel, sem conseguir respirar, sem força nos pulmões para soltar um leve pedido de misericórdia.
Disse que não quer a criança, que não tem tempo para lhe dar a devida atenção, continuou a minha boca, habitada a falar por ela própria e com autonomia para assegurar algumas responsabilidades de maior importância.
Explicou porquê?
Parece que tem um trabalho muito exigente com o amor, e é lhe bastante dedicada, como viste. Bastou que lhe tocasse o telemóvel para se levantar e ir ao seu encontro, colocar a farda e executar com rigor as tarefas que lhe forem pedidas.
Trabalho precário esse e com péssimo patrão. Parece que só o Diabo o conhece, que o viu sem capa e mesmo assim não foi capaz de definir a sua cara, tal são as manhas do camaleão, e apontou para o taberneiro ao que este lhe respondeu com um aceno como que a validar o que o se dizia.
Com tantos que andam por ai é difícil dares de caras com o que não usa sobretudo, com o que não se pinta com as cores da malícia e do engano. E o Diabo que se lixe com essa conversa que ele só conhece aqueles que lhe mandaram carregar, e foram muitos, de outra forma não teria as costas naquele estado. Pisquei-lhe o olho, em sinal de manifesta cumplicidade, e pedi-lhe para trazer a garrafa e dois copos que o meu sentimento carecia de humidade.
Eu conheço-o, intrometeu-se Deus, e não existe só um, mas também não existem muitos. Deus tem esta mania de só se dignar a falar quando a conversa não é com ele, o que se podia comprovar com a quantidade de pessoas que juntavam em alvoroço à porta do tasco, em fervorosos coros o seu nome invocavam e com ele tinham assuntos pendentes, e este pouco importado com o acontecimento, sentado em silêncio com o gato ao colo, cuidando-lhe da pata ferida e da cauda esmagada, recebendo do felino como troco um ronronar que mais se assemelhava a uma oração. Por momentos tive impressão que havia vislumbrado a morte no meio daquele tumulto, e ignorando Deus, não sem atribuir razão ao seu comentário, voltei-me novamente para o Óscar e perguntei-lhe.

Está ali a Morte?
Sabes que não vejo bem ao longe, mas é bem provável que sim. Deve querer saber se a deixas levar a paixão paixão a dar uma volta, disse, entre o apagar de um cigarro e o acender de outro.
Que pergunte à mãe da criança, que quer queira ou não, tem uma palavra a dizer sobre o assunto, exclamei.

quarta-feira, janeiro 20

(...) (parte 2)

Pelos vistos equivoquei-me, e apercebi-me do disparate assim que meti o primeiro pé no tasco e dei de caras com aquele ser extraordinário a varrer o chão, obrigado pelo diabo evidentemente, que não foi na sua habitual conversa e depressa arranjou uma maneira de saldar algumas dívidas leves, deixando as mais duras para serem cobradas noutra altura. Por momentos hesitei em entrar, na eventualidade de o Óscar estar zangado comigo por não lhe ter dito que o meu pote de coisas por pagar não era um porco capaz de ser abatido pela força e peso do dinheiro, no entanto a sua figura não mostrava indícios de indignação mas sim de saturação, de estafa. Dado que não há maneira de tirar o pó e a porcaria daquela velha taberna, aberta desde que o homem descobriu que tem necessidade de saciar a sua sede de desejos, compreendia perfeitamente que se apresentasse naquele estado de desânimo. Ao jeito de travessura avancei e agarrei-lhe a vassoura com força o suficiente para o obrigar a acompanhar-me e a sentar-se um pouco, o que não teria sido necessário se à partida soubesse que ele queria falar comigo, como se veio a comprovar.
Não havia ninguém desta vez, estávamos sozinhos. O próprio taberneiro via-se ocupado na cozinha a recolher um conjunto de desgraças para as servir mais logo, frias, para não variar nunca se consegue ter uma refeição quente por estes lados e não acredito que as coisas algum dia se alterem. É uma casa com tradição e já com símbolo de qualidade aprovado faz muitos anos para agora se deixar cair nos primeiros erros da inovação e ver-se dessa forma comprometida com os seus fiéis clientes, pessoas com interesses e vontades tão velhos quanto ela.

Quero falar contigo, começou o Óscar, Quer dizer que vais abandonar a paixão paixão e entregá-la a uma instituição de caridade?
Claro que não. Esta criança têm pai e têm mãe, uma mãe física, e têm uma madrasta real que é a Morte, que na ausência da primordial progenitora atormenta-me de tal forma o juízo que só me dá vontade de deixar lá o feto e dizer, Toma lá, vê la se és capaz de cuidar melhor dele do que eu?
Que mulher complicada tens tu! Disse em tom de brincadeira e com uma ligeira pitada de ironia à mistura.
Eu? Eu não tenho nada. Não se usa determinantes possessivos nestas situações. Teu, Tua, Seu Sua, são tudo termos que não se deviam utilizar para definir as pessoas, territórios que não se conquistam e portanto que não se possuem, que são de longe um dado adquirido mesmo que invoques o direito de usucapião, mesmo que já lá tenhas posto um pé ou outro, como já antes me ouviste dizer. Fiz questão de intercalar no diálogo uns valentes fodasse bem ao meu género, e continuei a desbravar caminho para deixar a curiosidade do Óscar ir pastar para outro lado.
Mas há um determinante que é justo que se aplique a esta situação, que é o Meu, ou a Minha paixão paixão, somente minha, e portanto ninguém me a pode tirar, só eu é que posso decidir para onde ela vai, como vai, e se algum dia vai deixar de ir andando.
És um bom pai!
Não é a minha primeira criança! E seguido dessa exclamação viro a cara para o lado numa tentativa de demonstrar que por mim a conversa ficaria por ali, não sem dedicar um olhar rápido às minhas memórias e recordar alguns filhos já hoje grandes, com outra identidade, quase irreconhecíveis.

Feito o flashbasck levo a mão ao copo e percebo que não existe copo nenhum sobre a mesa, como seria habitual, se o Óscar não se tivesse atirado com tanta vontade a estas questões. Apercebendo-se do meu gesto tomado em falso, ou sentido também vontade de beber alguma coisa, para o caso tanto dá, ergueu-se da cadeira e tomou a direcção do balcão com um passo lento e cuidado que teria passado totalmente despercebido aos ouvidos do Diabo, se não fosse o facto de não ter visto que a cauda de um gato espreitava simpaticamente por baixo do seu pé. Instintivamente o animal soltou o típico guincho de dor e desatou a fugir desalmado por entre cadeiras e mesas até atingir a porta de entrada, como se não bastasse ao gato já ter uma perna aleijada tinha agora, para lhe completar o cenário, uma cauda esmagada, dilacerada, que vá-se a ver, o Óscar não é propriamente levezinho. O dono, que deve ter entrado entretanto e sentado na mesa atrás da nossa sem que nem eu nem o Óscar tivéssemos-nos apercebido, correu em busca do seu malfadado gato.

Viste o raio do animal como corre com a perna aleijada, exclamou desvairado e com vontade de lhe ter pisado a cabeça em vez da cauda, ao menos dessa forma talvez tivesse sido capaz de abafar o som do bruto grunhido que chamou a atenção do Diabo, que saiu da cozinha e olhando para ele gritou, O que é que fazes parado?
Sabes, já uma vez lhe fiz pontaria com uma casca de noz mas deixei-o vir sossegado ter com o seu dono, ter com Deus.
Ai aquele é que é Deus? Perguntou com um certo desdém, como pergunta sempre quando vê pela primeira vez alguém que anda nas bocas do mundo e que ainda não lhe foi devidamente apresentado. Esta casa anda mesmo mal frequentada! rematou.

segunda-feira, janeiro 18

(...) (parte 1)

Estava sentado na tasca do costume e conversava com o Óscar debaixo de alguns olhares persistentes e perplexos que se questionavam com quem estaria eu a falar. Não percebia aquele ar espantado das pessoas que se concentravam na nossa conversa quando existem uns quantos que se deslocam a sítios sagrados para se meterem aos berros com alguém que é bem menos real e que se está a borrifar para o raio dos seus bracejos, mas permitam-me portanto descrever o "anormal" diálogo que ouviam esse tipo de criaturas ditas normais.

Óscar, porque é que não paras de olhar assim para mim?
Ah, como gostava de ser novo e bonito. A vida está para vocês juventude. És o meu orgulho sobrinho.
Isso não é nada assim. Deixa de ser parvo e enche lá o copo outra vez.
É verdade, dizia-me ele enquanto deixava cair o líquido no copo meio vazio, Já viste alguém perder 5 segundos a olhar para mim?
Óscar pah, tu estás morto como é que queres que alguém te foque se nem com uma grande angular te captávamos esse espectro?
A última miúda com quem tive uma relação foi a Morte, desabafou, E já foi há algum tempo.
Eu também e fiz-lhe um filho!
Foi? E que nome lhe deste?
Paixão Paixão!
Porquê a dobrar?
Porque um mal nunca vem só!
Nem um bem, retorquiu!
Precisamente, é um ser dúbio. O que é que esperavas vindo do ventre da Morte?
Talvez tenhas razão. Deixa estar que eu pago. Levantou-se e dirigiu-se ao Diabo para pagar a minha e a sua dívida.

Pobre Óscar, nunca tem dinheiro. Não o devo voltar a ver tão cedo.

"Eu não tenho vícios. A juventude hoje acaba-se com eles e acaba também por perder tudo na vida"
Eu tenho vícios! Bastantes... Abraço a decadência porque não tenho nada contra ela e gosto pouco de discriminações. Se é por isso que colecciono derrotas? Não porra. Ou será que esta senhora acha mesmo que me faço acompanhar do degredo para brindar à alegria?

domingo, janeiro 17

"As tuas mentiras são velhas mas tu conta-las bem"
Vi esta frase num filme, numa conversa entro o Jon Voight e o Sean Penn. Eu preferia que não me mentisses, mas se calhar o problema é meu que não percebo o que é a verdade. Os teus gestos são confusos e não deixam perceber se o que estás a montar é uma mesa ou uma cama. Pouco me importa se queres que te diga. Eu mantenho-me de pé e não me vou mexer para andar às voltas.

É bom voltar a sentir confiança em mim mesmo depois de acabares comigo. Ainda fazes parte de mim, eu sei e tu sabes, contudo existe algo que me impele a pensar que sou capaz de empurrar montes e fazer deles suaves planaltos, pegar em ti e pousar-te neles, e assim ficares ao lado das nuvens, mais perto do sol para me iluminares como antes me iluminavas, ou como antes gostavas de me iluminar.

Posso sempre esperar que te queimes e que te fodas pois não conheci nunca um mundo com dois sóis. Também nunca conheci um mundo sem ele, que puta de realidade aquela que tenho de enfrentar. Não te julgo. Eu se fosse Sol também não gostava de estar no teu lugar. Mas não pesas a reforma que isto é tudo da escrita para fora. Não estava à espera que apagasses a luz.

quinta-feira, janeiro 7

Sou teimoso e gosto de estampar e divulgar tal aspecto a mim mesmo, para me manter em estado constante de tensão, ou de tesão como é igualmente justo lhe chamar. Dois dos meus Eus gostam de jogar este tipo de jogo, semelhante àquele visto muitas vezes em peças cinéfilas: sentados a uma mesa e com um baralho de cartas expostas aleatoriamente,de costas voltadas para cima sobre a tampa, um de nós escolhe uma das 50 ao acaso, observe-la e sem mostrar ao outro pergunta-lhe que Carta é esta? Duque de copas. Muito bem. E esta? depois de repetir o mesmo gesto mas com uma carta diferente. Dama de Copas! Extraordinário, outra! e continuamos nesta merda eternamente, mudando alternadamente entre a personagem que faz as perguntas e a que responde. E é assim que passo muitos instantes do meu idiota tempo, a vive-los sabendo de ante-mão o seu resultado, e ainda assim insisto em vê-los e confirmá-los.

Crónica da crise

"As mulheres são infiéis quando o têm de ser e os homens são infiéis porque são loucos!"

Não podia estar mais correcta esta frase que ouvi na rádio radar. De uma forma geral, somos todos culpados, mas para mim não nos são proferidas sentenças iguais. Eu, neste caso, acho que sou vítima, ou pelo menos fui o que ficou a perder mais. Tudo bem que é discutível, embora ache que não seja legitimo, dizer que me aproveitei da situação e estiquei o sutiã ao máximo, mas fui eu que dei mais de mim do que tu. Não precisava de troco porque tenho por habito pagar contado, no entanto não vou conseguir abater esta despesa às finanças da minha alma, e devo realçar que lhe devo muito dinheiro, mas à partida esta tem de compreender que isto foi um investimento a fundo perdido e que é importante contribuir para o crescimento da economia, da minha e do meu mundo.

E ainda mais afirmo que também não abri sociedade anónima portanto não tenho de ficar de cara alegre por deixar ir o lucro. Também não fico zangado com ninguém.

O mundo que se chateie comigo se quiser, mas que ponha a mão nos tomates ou mesmo na cona antes de se vir em revolta e indignação.

quarta-feira, janeiro 6

Assombra-me a tristeza ver-te partir, ver-vos partir a todos pelos quais sinto muito apreço. Onde é que eu exagerei para se cansarem de mim? Tornei-me previsível. Se calhar ou será a vossa distância a única coisa que podemos dar como certa?
Deixai-me ir também que não quero estar com ninguém sem ser com vocês!
Deixai-me ir também que não é forma de estar assim convosco, baleado às mãos de quem me quer cortar o fio do juízo!
Deixai-me ir, não também, para dentro de mim e viajar nos prados secos a que fizeram questão de retirar a água no momento da vossa partida, da tua partida.

terça-feira, janeiro 5

Fazemos muitas vezes de conta que somos especiais para os outros, aqueles que são especiais para nós, e na realidade somo-lo. Somos especialmente descabidos na primazia que lhe fazemos, esticando a mão e colocando a maçã à frente dos seus olhos, ansiando pela doce trinca, à espera do suculento mastigar, mas na verdade não a engolem e não nos engolem a nós por conseguinte. O que é doce é para ser saboreado e o que é azedo e para ser comido e deglutido como se do fruto dos deuses se tratasse, como se no altar do sacrifício achasses que era teu dever deitar.

Nunca me irás comer pois eu das árvores não cresço e aos deuses nunca chamei de progenitores!

Não fazes refeição para o meu desejo.
Alvoreces no lugar da Lua e só és cheia quando ao mês lhe apetece.
Nem tu te sacias nem a mim me preenches a alma!

Porque é que damos tanta importância a pessoas que não nos querem coisa nenhuma? Se fossemos pneus dava casualmente com este género de acidente: quando um pneu se fode existe para compensar o sobresselente, inegável a sua importância, mas que não faz mais que a vez do primeiro quando este se lembra de arfar aos lábios das urtigas.

"Sem ti pneu sobresselente não tinha confiança para percorrer os quilómetros que tenho pela frente!"

Agora diz-me, serve um pneu para andar à pendura?

domingo, janeiro 3

Não sei como dizer que gosto de ti!
Se não sei gostar de mim como é que serei capaz de proclamar meu amor,
Coisa tão facilmente confundida com também minha dor:

E exaltar isto aos céus?
Ó triste inimigo que não tens misericórdia quando no chão me vês
E com o manto da paz não me deixas cobrir meu sentimento deveras enregelado.

Farás tu do meu predicado bandeira de teu território
Ó arrebatadora indiferença?