segunda-feira, novembro 30

Foste embora e todavia não foste só. Levas-te a minha alegria no teu bolso e a felicidade na mochila atrás das costas. Eu já sabia que não existiam separações de bens que fossem justas, só não sabia é que serias tu quem ficaria com mais. Ao menos toma, leva-me o rancor que ele não me pertence! Leva-lo que eu sei que tens dúvidas quanto à falta que te fará e porque tens a certeza que me deixarás sem nada. Toma! Come tu desse prato que eu agora estou sem fome.

quinta-feira, novembro 19

Vai fazer pontaria para o caralho!

Estavam não sei quantos gatos no telhado do restaurante atrás de minha casa.
Estavam dois juntos a dormir do meu lado direito e outros três à minha frente, com dois deles igualmente a dormir e o outro a olhar para sabe-se lá onde.
Eu? Eu estava à varanda.
Estavam mais dois deles um pouco alheios deitados do meu lado esquerdo onde se encontrava também um que não devia estar.
Esse que estava e que não devia estar, estava a olhar para mim com um ar pouco atrevido, passageiro até. À distância que me encontrava conseguia perceber perfeitamente que o seu olhar acabava onde começava um movimento meu. Com o braço erguido em sinal de provocação ainda lhe perguntei o que é que queria na esperança de ser surpreendido por um gato que fala, mas sem sucesso. A minha intervenção serviu-lhe de pretexto para se pôr a andar. Foi nesse momento que percebi que o gato tinha uma perna ferida e que a minha presença o assustou desde a primeira troca de olhares, o que o levou a ir ao encontro de Deus Nosso Senhor que naquele tarde dava autógrafos na tasca ao fundo da rua.
Deitei fora a pequena casca de noz que tinha na mão e com a qual tinha fisgado a cabeça do gato. Precisamente esse gato. Amaldiçoei a vida enquanto me dirigia para o quarto. Que mania temos nós de magoar aqueles que já se deparam com o corpo esfolado, que já se deparam com a tela saturada de encarnado!

domingo, novembro 15

Sinto que sou uma pessoa pensativa. Estou muitas vezes ocupado a meter os meus botões em ordem, esses desordeiros e vadios, infantis grande parte das vezes. Um deles têm-me dado algum trabalho, de tal forma que sou muitas vezes assaltado por um sentimento que vem vestido com vastas cores, umas de tons lânguido, outras de tons apáticos, mas sempre com uma base de carência. É algo que me deixa sem palavras mas o que pode parecer como algo constrangedor é inevitavelmente o ponto de partida para um percurso sem fim à vista. A fonética é obrigatoriamente dispensável quando o assunto em questão é a mudez, pelo menos a fonética banalmente assumida, aquela feita com articulações de palavras, não a autentica, a que é feita de gestos e toques, a que é feita entre eu e tu, tu e ele, ele e ela, eles e nós.

"Para quem usa tanto a palavra não achas que andas a pregar uma religião que não é a tua?" Argumenta o botão.
Respondo-lhe com uma calorosa manifestação gestual, o dedo do meio, a título de defesa.
"Isso quer dizer que gostas de mim em linguagem gestual não é?"
"Não sejas irónico. Não achas que as palavras nos distanciam muito mais do que nos aproximam? Achas que transmitem exactamente aquilo que pensamos, que com elas consegues explicar honestamente o que sentes por outra pessoa, que consegues explicar como te sentes: o que te vai na alma, portanto e popularmente falando?"
"Mas o que é que pretendes, que deixemos de usar palavras para comunicarmos, para nos entendermos, para discutirmos, para pedir perdão, para dizer estás perdoado, para dizer não me abandones, para dizer vai-te embora, para nos amarmos e para nos odiarmos?" Protestava violentamente o botão até que é interrompido pelo momento em que tu chegas, pelo momento em que o quarto fica mais quente e luminoso, pelo instante em que a carência é assassinada com a tua volta. Passas-me a mão pelo cabelo, fazes-me uma festa, beijas-me carinhosamente, pegas na toalha e dizes que vais tomar banho mas a paixão não me deixa ouvir palavras e a minha alma não pode ser apalpada por sons. Desapareces e levas contigo a arma da minha salvação.

Levanto-me da cama e começo a procurar as minhas coisas. Vejo a minha camisa ao fundo da cama, a única peça de roupa que encontro perdida no teu quarto. Apronto-me a vesti-la, um braço de cada vez. Olho-me ao espelho afim de confirmar porque é que não a consigo apertar em condições e comprovo aquilo que já sabia e que não queria assumir: "Onde é que anda aquele botão?"

quinta-feira, novembro 12

Faca de dois gumes

Um gato com cio arrasta-se por telhados a fora.
Digam-me lá, o que procura senão um lugar onde se foda?

Só dás conta do futuro quando contas os dias para a tua morte.

segunda-feira, novembro 2

Homenagens

As homenagens são sempre feitas tardiamente. O António Sérgio morreu mas deixou-nos a sua voz na nossa cabeça, eternamente por sua vontade. Diz-me, será que tu ainda me ouves ou o nosso carinho morreu sufocado naquele último beijo?
Devemos viver para aqueles que amamos e para aquilo que defendemos!
Isto é o legado que me deixas-te mestre da rádio. Acho que me perdoas por invocar o teu nome por uma razão que é para mim bastante justa.