terça-feira, maio 18

A falta é um cartão de visita para algo que está para vir e que possivelmente não sabemos bem o que é na altura. Se ela não existir, significa que nada está à nossa porta, que nos é indiferente que a campainha toque, que não sentimos a vontade frenética de estarmos sempre prontos para nos levantarmos para a abrir. As sensações de afecto, creio eu, são muitas vezes vistas como uma necessidade, seguem um propósito ou talvez um fim, para meu triste deleite. Quando as manifestações ou gestos por nós provocados perdem o interesse deixamos no instante de ser importantes e somos remetidos para mais um caixote, não para sermos guardados no sotão mas para sermos guardados na cave, porque é sempre mais fácil descer do que subir, e só de pensar que temos de descer para depois subir, deixamos simplesmente de lá ir, pois não vemos utilidade nem sentido no efeito. É por isso que acho que tudo o que vem também se vai, e há sempre quem se venha pelo meio, e eu nunca me arrependo do que veio, mas fico constrangido por aquilo que poderia ter vindo, pelo menos de bom a acontecer.

Eu não vejo o afecto como uma necessidade, vejo-o como um inutilidade maravilhosa, e é por essa falta que me vejo de pé encostado à porta, à espera do que virá...

segunda-feira, maio 17

As palavras, ditas ou escritas, pesam. Principalmente aquelas mais simpáticas, as que roçam no carinho. Lembrem-se que por mais lamechas que as frases possam soar existe sempre uma sensação de leveza quando dizemos adoro-te ou gosto de ti. Ditas muitas vezes transcendem a riqueza e deixam o pobre desconfiado, chegam à nossa alfândega como que um foragido com um passaporte falso, ainda assim, não é agradável ouvi-las, lê-las por vezes?

Não tragam para aqui o orgulho agora. Deixem-no preso a outro poste, a latir se for essa a sua vontade porque também não é necessário amordaça-lo. Ele vai-se calar e eventualmente acabará por morder, e que vos morda a picha ou a rata para metermos a questão da virilidade já de parte.

Vá, cometam esse crime, o de dizer essas palavras. Corram a ser julgados na praça pública, sejam enxovalhados, baixem a cabeça de vergonha, sintam-se a pior merda por não o ouvirem de volta, desfaleçam perante a indiferença, mas que não se atrevam a de dizer eu amo-te. A sociedade é capaz de não vos perdoar por essa, e eu não quero ser acusado de instigador de tal motim! Vai-se a ver e o paraíso ainda é a terra não?

sexta-feira, maio 14

João, onde vais?
Onde queres que vá se estou aqui, se ainda à um minuto me viste aqui, e daqui a dois ainda me verás, respondi estupefacto com a pergunta.
Tenho sempre a impressão que estás pronto para te ir embora, disse, ao mesmo tempo em que retirava os chinelos dos pés e cruzava as pernas na cadeira.
Repara, quantas cadeiras vês tu aqui, nesta sala escura da tua cabeça?
Duas, respondeu de língua afiada.
Pois bem, e como bem observas existem duas. Uma em que estás tu sentada e outra onde estou eu. Não existe mais nenhum sítio iluminado nesta divisão e tu já me disseste que esta cadeira está ocupada, portanto quando me levantar daqui não é para me dirigir a algum lado, mas para desaparecer na penumbra não, e arregalei os olhos como forma de acentuar o meu ponto de vista.
E não haverá mais cadeiras?
Possivelmente, disse-lo depois de dar uma vista de olhos rápida ao local. Mas está tudo muito escuro e cheio de coisas, não tenho a certeza.
Não sei como acender a luz. Se calhar não estamos na minha cabeça, mas sim na tua, afirmo-o de tal forma que essa afirmação sim, era capaz de iluminar o universo inteiro e fazer do sol uma estrela insignificante.
Não faço ideia. Cá para mim isto é tudo fruto de uma história mal contada.

Do sentido, se é que há algum...

Apesar do lados que nos é permitido escolher, acabamos por força do sentido seguir adiante. Esquerda, direita, frente são irrelevantes, para trás nem sequer existe nas mudanças do continuar. Somos por vezes confrontados com a frase isto não faz sentido, quando nos sentimos embalados pela força da circunstância. Ainda assim existe sempre uma paragem, uma estação, um lugar para identificar o ponto onde nos encontramos no mapa dos sentimentos. E pode parecer estranho mas andamos sempre às voltas, de outra forma não poderia ser, visto que acabamos por encontrar nas novas estações certas semelhanças com as antigas por que passámos.

Parei na mágoa, e antes já havia passado pela dor, e penso que devo mudar de transporte. Vou deixar o comboio e apanhar um avião e perder-me no sentido do trajecto, fazer escala em algum ponto do meu ser e embarcar novamente, e parar lá no alto para não precisar de saber onde fica a minha alma, se à esquerda, se à direita, se ao pé de ti.

O que é que nos separa? O meio de transporte talvez...

Eu só sirvo às mesas. Mostro o cardápio e trago aquilo que me pedem.
Que culpa tenho eu se a refeição vem fria?

quarta-feira, maio 5

Peguem numa laranja e espremam-na. Espremam-na com as mãos, com o espremedor, com aquilo que servir o efeito de lhe retirar todo o sumo possível. Dividam-no se quiserem ou bebam-no todo, deixo essa parte ao vosso critério.

Peguem noutra laranja e imaginem-se no lugar dela, a ser espremida, com dó ou piedade tanto faz. Imaginem-se a ser apertados até ao lugar mais próximo do além, imaginem a pressão sobre o vosso ser, constantemente a aumentar, levando o corpo ao limite até que este se esvai em esguichos de sangue libertados por tudo o que são orifícios conhecidos.

Dêem a provar esse sumo da mágoa à pessoa que vos fez tal coisa e vamos ver se agora lhe é igual ao litro. Quem tem sede bebe, e que faça bom proveito.