quarta-feira, janeiro 20

(...) (parte 2)

Pelos vistos equivoquei-me, e apercebi-me do disparate assim que meti o primeiro pé no tasco e dei de caras com aquele ser extraordinário a varrer o chão, obrigado pelo diabo evidentemente, que não foi na sua habitual conversa e depressa arranjou uma maneira de saldar algumas dívidas leves, deixando as mais duras para serem cobradas noutra altura. Por momentos hesitei em entrar, na eventualidade de o Óscar estar zangado comigo por não lhe ter dito que o meu pote de coisas por pagar não era um porco capaz de ser abatido pela força e peso do dinheiro, no entanto a sua figura não mostrava indícios de indignação mas sim de saturação, de estafa. Dado que não há maneira de tirar o pó e a porcaria daquela velha taberna, aberta desde que o homem descobriu que tem necessidade de saciar a sua sede de desejos, compreendia perfeitamente que se apresentasse naquele estado de desânimo. Ao jeito de travessura avancei e agarrei-lhe a vassoura com força o suficiente para o obrigar a acompanhar-me e a sentar-se um pouco, o que não teria sido necessário se à partida soubesse que ele queria falar comigo, como se veio a comprovar.
Não havia ninguém desta vez, estávamos sozinhos. O próprio taberneiro via-se ocupado na cozinha a recolher um conjunto de desgraças para as servir mais logo, frias, para não variar nunca se consegue ter uma refeição quente por estes lados e não acredito que as coisas algum dia se alterem. É uma casa com tradição e já com símbolo de qualidade aprovado faz muitos anos para agora se deixar cair nos primeiros erros da inovação e ver-se dessa forma comprometida com os seus fiéis clientes, pessoas com interesses e vontades tão velhos quanto ela.

Quero falar contigo, começou o Óscar, Quer dizer que vais abandonar a paixão paixão e entregá-la a uma instituição de caridade?
Claro que não. Esta criança têm pai e têm mãe, uma mãe física, e têm uma madrasta real que é a Morte, que na ausência da primordial progenitora atormenta-me de tal forma o juízo que só me dá vontade de deixar lá o feto e dizer, Toma lá, vê la se és capaz de cuidar melhor dele do que eu?
Que mulher complicada tens tu! Disse em tom de brincadeira e com uma ligeira pitada de ironia à mistura.
Eu? Eu não tenho nada. Não se usa determinantes possessivos nestas situações. Teu, Tua, Seu Sua, são tudo termos que não se deviam utilizar para definir as pessoas, territórios que não se conquistam e portanto que não se possuem, que são de longe um dado adquirido mesmo que invoques o direito de usucapião, mesmo que já lá tenhas posto um pé ou outro, como já antes me ouviste dizer. Fiz questão de intercalar no diálogo uns valentes fodasse bem ao meu género, e continuei a desbravar caminho para deixar a curiosidade do Óscar ir pastar para outro lado.
Mas há um determinante que é justo que se aplique a esta situação, que é o Meu, ou a Minha paixão paixão, somente minha, e portanto ninguém me a pode tirar, só eu é que posso decidir para onde ela vai, como vai, e se algum dia vai deixar de ir andando.
És um bom pai!
Não é a minha primeira criança! E seguido dessa exclamação viro a cara para o lado numa tentativa de demonstrar que por mim a conversa ficaria por ali, não sem dedicar um olhar rápido às minhas memórias e recordar alguns filhos já hoje grandes, com outra identidade, quase irreconhecíveis.

Feito o flashbasck levo a mão ao copo e percebo que não existe copo nenhum sobre a mesa, como seria habitual, se o Óscar não se tivesse atirado com tanta vontade a estas questões. Apercebendo-se do meu gesto tomado em falso, ou sentido também vontade de beber alguma coisa, para o caso tanto dá, ergueu-se da cadeira e tomou a direcção do balcão com um passo lento e cuidado que teria passado totalmente despercebido aos ouvidos do Diabo, se não fosse o facto de não ter visto que a cauda de um gato espreitava simpaticamente por baixo do seu pé. Instintivamente o animal soltou o típico guincho de dor e desatou a fugir desalmado por entre cadeiras e mesas até atingir a porta de entrada, como se não bastasse ao gato já ter uma perna aleijada tinha agora, para lhe completar o cenário, uma cauda esmagada, dilacerada, que vá-se a ver, o Óscar não é propriamente levezinho. O dono, que deve ter entrado entretanto e sentado na mesa atrás da nossa sem que nem eu nem o Óscar tivéssemos-nos apercebido, correu em busca do seu malfadado gato.

Viste o raio do animal como corre com a perna aleijada, exclamou desvairado e com vontade de lhe ter pisado a cabeça em vez da cauda, ao menos dessa forma talvez tivesse sido capaz de abafar o som do bruto grunhido que chamou a atenção do Diabo, que saiu da cozinha e olhando para ele gritou, O que é que fazes parado?
Sabes, já uma vez lhe fiz pontaria com uma casca de noz mas deixei-o vir sossegado ter com o seu dono, ter com Deus.
Ai aquele é que é Deus? Perguntou com um certo desdém, como pergunta sempre quando vê pela primeira vez alguém que anda nas bocas do mundo e que ainda não lhe foi devidamente apresentado. Esta casa anda mesmo mal frequentada! rematou.