sexta-feira, fevereiro 24

Entre as migalhas e o pão

Enquanto descia aquela inclinada e traiçoeira rua, numa destas últimas noites, esse bocado de calçada que me separava então de um taxi que me levaria directamente a casa onde certamente repousaria a minha inquieta melancolia, reparei num jovem casal sentado à porta de um dos tantos prédios que ali existem. Segredavam e trocavam gestos com algum carinho o que, neste tipo de circunstâncias, me leva a fixar o meu olhar nos sapatos ou nos vulgares botões como forma de lhes permitir o máximo de privacidade, no entanto chamaram-me a atenção. Reparei nas maravilhosas gargalhadas e na extrema cumplicidade que partilhavam e por momentos julguei que estava a olhar para nós os dois, eu e tu. Apressei-me a fazer contas e estiquei os dedos de uma mão enquanto me lembrava de quantas cervejas havia bebido, na esperança de talvez ser capaz de identificar o meu grau de alcoolemia mas desisti quando reparei que seria impossível sermos nós. Naturalmente porque não é possível estar de pé num sítio e olhar para mim próprio sentado noutro, porém não cheguei a essa conclusão por esse extraordinário facto. Não poderíamos ser nós porque esses momentos já se passaram à imenso tempo. Talvez vislumbrasse um eco da minha memória.
Fui para casa com esse pensamento e aliei duas circunstâncias engraçadas. O facto de estar sem carro produziu-me um valente sorriso na cara. Expressava um sincero e orgulhoso já vais mais bêbado que nem uma mula, fizeste tu muito bem em deixar o carro em casa, mas à medida que o taxista me levava para os aposentos da minha desgraça não compreendia o que existia entre nós, ou o que talvez tivesse existido, que direcção terá tomado ou em que sentido nos dirigimos agora. Olhava para a estrada e percebia que em relação a ti sempre me deparei com cruzamentos cheios de semáforos laranjas, advertindo-me sempre para passar com cuidado e muita atenção. Tentei encontrar placas, setas, que me indicassem o caminho e, embora míope, consegui as ver, mas nenhuma delas tinham escrito o destino a que conduziam.
Estou habilitado, segundo dizem os entendidos, a conduzir um carro. Certamente não teria sido o acertado faze-lo nessa noite em que me deparei com esse jovem casal, mas independentemente disso tenho impressão que me terão de levar a casa muitas mais vezes. Confesso que receio não vir a dar com o caminho que nos juntou outrora. Não terei boca para seguir migalhas, mas tenho estômago para o pão inteiro.

Desculpe lá, pode parar perto daquela roulote?! Tenho fome.